O Rio Grande do Sul vive um momento histórico. As fortes chuvas torrenciais devastaram o Estado gaúcho. Neste momento, a região vive uma circunstância semelhante à de um cenário pós-guerra.

Mas diante da tragédia, vimos algo muito positivo acontecer. Há tempo a população não se reunia para atuar em favor da solidariedade e do altruísmo. Atos benéficos que há tempos não víamos acontecer, pois as sociedades, assim como a vida cotidiana, direcionavam os cidadãos a atuar individualmente, isto é, a atuar em favor dos próprios interesses e benefícios. Os acontecimentos decorrentes da catástrofe climática permitiram ao indivíduo ampliar essa perspectiva individualista; a sair um pouco da sua própria bolha. Permitiu ao indivíduo observar que mais além da sua vida essencialmente privada, encontra-se também um ‘algo’ lá fora.

Neste sentido, a catástrofe no RS permitiu ao cidadão comum ‘redirecionar a sua atenção ao mundo’. Um mundo que há tempos havia sido abandonado, embora não somente abandonado pela classe dirigente política, mas também por grande parte da população, a qual e com o avanço das décadas passou a habituar-se com determinadas injustiças perfeitamente visíveis, fomentando uma atitude cada vez maior de ‘indiferença’ e ‘insensibilidade’ com respeito aos diversos acontecimentos que giram ao nosso redor (o olhar indiferente e desinteressado às crianças que vendem balas nas ruas, por exemplo). E quanto maior é a o grau de ‘indiferença’ com respeito ao mundo lá fora, maior é a abertura do espaço para a chegada de novas formas de injustiças sociais.

Com isto, a catástrofe do RS finalmente possibilitou ao cidadão comum despertar (ao menos provisoriamente) o seu grau de sensibilidade com relação aos acontecimentos políticos e sociais ‘injustos’, as quais vão mais além do próprio âmbito privado. Este incremento de ‘sensibilidade’ conseguiu motivar muitos cidadãos, ilesos frente às inundações, a saírem de suas casas para atuar na linha de frente, ajudando a milhares de desfavorecidos, e promovendo o bem-comum.

O bem-comum é um princípio ético e político fundamental que busca o benefício e a prosperidade de toda a comunidade, promovendo a justiça social e a solidariedade. Na Europa, este princípio encontra-se vivo no seio de praticamente todo o continente, com especial ênfase daqueles países que formam parte da União Europeia. A França é um ótimo exemplo para observar a grande mobilização popular e a participação em atos públicos, de cidadãos que lutam a favor de interesses comuns, e também daqueles cidadãos que não se encontram afetados por determinadas injustiças sociais, mas que mesmo assim se unem para promover o bem-comum. Os europeus são inteiramente conscientes de que a felicidade individual também depende da felicidade geral dos outros. Estão plenamente despertos diante das possíveis chegadas das possíveis injustiças.

A chegada da catástrofe ambiental é um acontecimento iminente, uma justiça inevitável. No entanto, outras injustiças que precedem essa catástrofe, como o constante aumento das desigualdades sociais e a fome, poderiam ser perfeitamente evitáveis ou ao menos diminuídas se a população deixasse de se preocupar tanto com questões que dizem respeito apenas à sua vida particular. Com isto, se observa que não somente os políticos são os culpáveis pelo abandono das questões públicas.

Também não esqueçamos que, além de cuidar da nossa própria bolha, há um mundo lá fora que precisa de nós. Cuidar do espaço público é cuidar de todos. Mantenhamos o mesmo grau de sensibilidade respeito à catástrofe do Rio Grande com o fim de não normalizar futuras injustiças.