Sobre o momentoso tema do Marco Temporal das Terras Indígenas, quero dar um depoimento bem pessoal. Quando eu era deputado, no tempo em que Fernando Henrique era o Presidente, um amigo do Meio Oeste catarinense pediu-me que conseguisse uma audiência com o então Ministro da Justiça, Nelson Jobim. Para esse encontro iriam do interior daquela região para Brasília alguns pequenos agricultores, cujas terras haviam sido classificadas como “terras indígenas”. Eles foram expulsos de onde moravam e cultivavam a terra. Todos mostraram ao Ministro suas mãos calejadas para deixarem claros que não eram grandes produtores, grandes proprietários de terras. E nem precisavam ter feito isso: a modéstia de suas roupas, a pele curtida pelo sol e o olhar humilde demonstravam com perfeição a veracidade de suas palavras.  

Fizeram o relato dos fatos. Uma notícia veiculada na imprensa de que aquela porção do território catarinense havia sido incluída no rol das áreas indígenas, estimulou membros de tribos localizadas mais ao Oeste a se deslocarem e invadirem suas propriedades. Desalojados da moradia e do trabalho, estavam ali para fazerem um apelo: a revisão das decisões que provocaram essa grande tragédia nas suas famílias. E, para justificar esse pedido de socorro, mostraram a Jobim os documentos que comprovavam, de acordo com a lei, serem os legítimos proprietários daquelas terras. Apresentaram escrituras e registros públicos. Alguns deles haviam herdado de seus pais, que haviam herdado de seus avós e assim ao longo de várias gerações. Tudo atestado por títulos com fé pública. Mas, como apesar de tudo isso, foram desapropriados compulsoriamente, pediam que, em último caso, fossem, pelo menos, indenizados pelo que perderam. Assim, ainda poderiam comprar algum outro chão, em outro lugar. 

Eu senti que o Ministro, como pessoa, ficou sensibilizado. Mas, ele falou como jurista. Disse ao grupo que a propriedade dos índios sobre a terra é “imemorial”, vale desde sempre. E a partir do momento em que as áreas são declaradas como “indígena”, todos os demais documentos perdem o valor. No caso deles, só o que poderiam pleitear era a indenização das benfeitorias: as modestas residências e os pequenos galpões. Coisas que, na realidade, valiam muito pouco. E, se desejassem, esses agricultores poderiam se candidatar à obtenção de algum lote em um assentamento de sem-terra que estava em implantação no Oeste.

É provável que esse drama todo tenha sido provocado pelo “marco temporal” definido na Constituição de 1988 e pelos atos burocráticos que, nos anos seguintes, foram implementando suas prescrições, e que, por algum desajuste de avaliação, entenderam que aquele pedaço de chão possa ter sido, muito remotamente, e talvez temporariamente, habitada por indígenas isolados. Uma Procuradora de Justiça, especialista nessas questões, me explicou mais adiante que também eram considerados como “indígenas” os locais onde índios nômades teriam transitado em épocas passadas.

A determinação constitucional de que eram consideradas indígenas todas as terras, e apenas elas, que fossem ocupadas por índios até a data da promulgação da Constituição, martirizou várias famílias do Meio Oeste de Santa Catarina. Se prevaleceu para esse episódio, por certo deve agora prevalecer para a proteção de outras famílias – inclusive e até especialmente no nosso Estado – que hoje se vêm ameaçadas por possíveis novas decisões que invalidem aquele marco, aquela determinação constitucional de que dali para frente não mais seriam acrescentadas novas áreas às já definidas como indígenas.

Eu tenho grande respeito pelos que hoje chamam de “povos originários”. No Alto Vale do Itajaí, visitei algumas vezes a comunidade de um desses povos, fui recebido nas suas casas, dividi refeições com alguns de seus habitantes. Vi exemplos de organização, de empreendedorismo, de respeito à família e à vida. Fiz amizades ali. E não creio que eles entendam como justo desalojar famílias de qualquer povo em nome de uma expansão territorial que não encontra justificativa.