Este foi o título de uma conferência – proferida pelo prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, da qual se faz aqui uma pequena síntese –, realizada em 26/05/23 no XX Congresso Internacional de Direito Constitucional, realizado em Florianópolis.

A áspera provocação causou (e causa) estranheza, justamente pelo fim em si ou, ainda, àquilo que a Constituição da República e o Processo Penal se destinam e representam; ou deveriam.

Apesar de incômoda, tal reflexão vai ao encontro do que já disse Clarice Lispector: “O óbvio é a verdade mais difícil de se enxergar”.

O tema permeia a ideia de que, por estabelecer os princípios fundamentais que regem a organização do Estado e os direitos e garantias dos cidadãos, a Constituição da República é a lei máxima de um país e, por ser o documento basilar do ordenamento jurídico, possui uma relação intrínseca com o Código de Processo Penal. É pela aplicação deste que melhor se mede a efetivação daquela e, portanto, o grau de civilidade de um povo, como já ensinaram tantos grandes autores.

Não obstante, a Carta Cidadã de 1988 consolidou uma série de direitos e garantias aplicáveis ao Processo Penal. Ela desempenha, assim, uma função essencial ao estabelecer as bases e os limites para o exercício do poder punitivo do Estado, garantindo a observância dos direitos individuais e, sobretudo, o devido processo legal.

Nesta senda, percebe-se a clara e impositiva influência constitucional no funcionamento do sistema de justiça criminal. Destacam-se o direito à ampla defesa, ao contraditório, à presunção de inocência, ao devido processo legal, ao princípio do juiz natural e à inadmissibilidade das provas ilícitas, dentre outros.

Além disso, a Constituição estabelece que a prisão antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória deva ser medida excepcional, reservada aos casos de extrema necessidade, respeitando-se o princípio da presunção de inocência.

Neste avançar, outro aspecto importante diz com a organização e competência dos órgãos responsáveis pela condução do processo penal onde, constitucionalmente, estabelece-se a divisão de competências entre a União, os Estados e o Distrito Federal. Define-se, também, quais são os órgãos responsáveis para cada etapa da chamada persecução penal, como a Polícia, o Ministério Público e o Poder Judiciário.

Todavia, ante o atual momento punitivista e de ultrajante espetacularização do Processo Penal brasileiro (Casara), tudo aquilo narrado até aqui (seja nos parágrafos anteriores ou desde 1964), soam como utópicos; ou meramente “de uso tópico”.

Por isso, a provocação, com ares de afirmação: “A Constituição está ultrapassada para o Processo Penal?”

A resposta renderia um livro, mas em pura síntese, consiste em pensar uma proposta de Código Penal e de Código de Processo Penal alinhados com a Constituição e não o contrário. Não se deve olvidar que o Código Penal é de 1940, e foi construído para servir de controle às novas relações de trabalho que se impunham à época.

Porém, o chamado “código das penas” está desatualizado socialmente e dogmaticamente. Prova disto é o reflexo da persecução penal visto no sistema prisional: superlotado, desumano e ineficaz; enfim, um “estado de coisas inconstitucional”, como já declarou o STF. Ou seja, é uma imagem insana de que a sociedade atual permaneceria inalterada desde 1940.

Em contrapartida, o correto seriam Códigos Penal e Processual Penal cidadãos, alinhados com a – tida – Constituição cidadã; a mesma que impõe a dignidade da pessoa humana, o devido processo legal e o estado democrático de direito.

No entanto, basta uma rápida olhada no “retrovisor” a partir da “Lava-Jato” e outras que seguem fazendo estrada por aí afora. Afinal, não se pode preterir um lado para “preferir” outro, em um – mafioso – “girar de metralhadora”, passando por cima da lei e da Constituição da República. “A isonomia, porém, não faz distinção entre os cidadãos e isso é imprescindível para se deitar a luz constitucional sobre todos”(1).

É preciso, então, levar a lei a sério (Dworkin), fazendo-a viva e, de tal modo, marcando a isonômica máxima: todo mundo entra no jogo se preciso for, mas sempre conforme a lei. E se por qualquer razão alguém admitir que o jogo seja à margem da lei, depois não poderá reclamar se tal “força estranha” vier contra seus interesses. A Lava-Jato e o que se tem passado hoje são bons exemplos. Durante a Lava Jato (visivelmente dirigida a um escopo político), alguns aplaudiam e outros choravam e reclamavam. Girada a roda da vida, mudado o ambiente político, os que aplaudiam agora choram e reclamam. Resta – disso tudo – uma conclusão bem clara! Se todos (os dois lados) reclamam, não é possível que estejam todos errados e, de fato, não estão. Portanto, o holofote deve iluminar a fonte das reclamações: a decisão fora da Constituição e da lei, em espaço de exceção, como ponto fora da curva, fruto de mera interpretação criativa (Ferrua) e solipsista (Streck). Isso, como sabem todos, tem sido insuportável. Afinal, produz desconforto e grande insegurança jurídica.

Doutra parte, sob as linhas traçadas em 2021, “neste escopo, afloram-se aqui as semelhanças com os tempos experienciados no Brasil, onde a clara cizânia ideológica entre os poderes constituídos, no constante atrito entre normas pelo conflituoso uso de princípios do direito para justificar, ou arguir, ‘razões desarrazoadas’, que o aviltamento a preceitos basilares de uma democracia não parecem ser meras coincidências às características do ‘Teatro do Absurdo’. Afinal, como pode tamanha voracidade em dar sentido às próprias interpretações do texto legal no afã de provar justamente o contrário do que se fala? Descumprir a Constituição alegando estar defendendo-a é, no mínimo, inquietante!” (2)

Em conclusão, não há espaço para a democracia fora do respeito à Constituição e à lei, mormente em se tratando da jurisdição, “ossia potere dei giusdicenti” (3). Há, atrás disso e para além da ideologia, algo demais importante e que deve ser lembrado sempre. A lei protege o juiz e lhe serve de escudo, como sempre se soube. Está em Alberto Camon, ao falar de Massimo Nobili, grande catedrático de processo penal de Bologna, então falecido (trata-se da publicação da obra póstuma): “Quem lhe conheceu e teve condição de falar com ele desses temas, entende imediatamente que o autor – juiz na república de San Marino – aqui está reservando o fruto de uma experiência pessoal: a lei processual, frequentemente considerada pela nossa magistratura como uma intolerável diminuição dos poderes superiores, era, ao contrário, vivida pelo Nobili-juiz como um conforto capaz de aliviar um fardo pesado demais. (4)

Há de se esperar que o exemplo do Nobili-juiz seja acolhido por todos e praticado por aqueles que desejam a democracia.

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é Professor Titular de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (aposentado). Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Professor do Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade Damas, Recife. Professor do Programa de Pós-graduação em Direito da UNIVEL, Cascavel. Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR), Mestre (UFPR); Doutor (Università degli Studi di Roma “La Sapienza”). Presidente de Honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória. Advogado. Membro da Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP, hoje Projeto 156/2009-PLS.

Thiago de Miranda Coutinho é graduado em Jornalismo e Direito. Especialista em Inteligência Criminal, é coautor de 3 livros e articulista nos principais veículos jurídicos do país. Atualmente, é Agente de Polícia Civil e integrante do corpo docente da Academia de Polícia Civil do Estado de Santa Catarina. Instagram: @miranda.coutinho_