É no mínimo inquietante, quando nos deparamos com um ser humano revirando o lixo em busca de algo que possa saciar a sua fome. A sensação de impotência e perplexidade nos convida à imediata reflexão: onde falhamos?

Quem já presenciou este tipo de cena sabe o sentimento que ela gera! Ao tentarmos nos colocar no lugar daquele que precisa recorrer ao lixo para ter o que comer, imaginamos (e apenas imaginamos) o grau de sofrimento e desespero – físico e psicológico –, que a fome extrema causa.

A falta de opção alimentar (quiçá digna) – fruto de um Estado falido e de uma Constituição aviltada e desprestigiada na acepção dos seus preceitos basilares –, faz com que um país protagonize inúmeros casos do chamado furto famélico, aquele em que há subtração de coisa alheia móvel para prover a sua subsistência ou de terceiros (filhos, por exemplo) e que, nas palavras do ilustre Desembargador aposentado (TJSP), Exmo. Sr. Alberto Silva Franco, “é praticado por quem, em estado de extrema penúria, é impelido pela fome, pela inadiável necessidade de se alimentar”.

E o que dizer, então, de quem precisa recorrer a alimentos vencidos que estavam no lixo?

Foi o que aconteceu em Uruguaiana-RS, quando dois homens reviraram o lixo de um supermercado e furtaram produtos já vencidos que, conforme os autos, somavam R$50,00 (queijo, calabresa, presunto e bacon).

O fato ocorreu em agosto de 2019, mas só agora ganhou a grande mídia, pois depois da justiça gaúcha absolve-los em face do Princípio da Insignificância, o Ministério Público recorreu da decisão.

Não bastassem as avalanches doutrinárias que consideram casos dessa natureza como não criminosos, pois estão amparados pelo Estado de Necessidade (que é uma das excludentes da ilicitude; ou seja, quando não há crime mesmo diante da prática de fato descrito como tal) ou como decidiu o próprio Juiz do caso, pelo Princípio da Insignificância (quando a conduta praticada é minimamente ofensiva e não representa um perigo social), tentar a todo custo “criminalizar a fome” é, no mínimo, indigno; é pestanejar diante dos direitos humanos, da miserabilidade ou do sentimento de justiça social!

Não obstante, como no outro episódio ocorrido em São Paulo onde, depois de ter sido presa por furtar macarrão instantâneo e refrigerante para os filhos, uma mulher de 41 anos pediu desculpas e, no momento de sua soltura, declarou: “eu quero voltar a ser gente”.

Ou ainda, o que se pode concluir sobre a fatídica placa afixada em um açougue de Florianópolis com os dizeres “Osso é vendido e não dado”, cujo quilo do “produto” custava R$4,00!?

No ponto, de acordo com uma pesquisa (2020) divulgada pela Rede Penssan (Rede brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), mais da metade da população brasileira está em situação de insegurança alimentar (quando não se tem certeza se haverá comida suficiente no dia seguinte); são 116,8 milhões de pessoas!

A materialização dessa afronta à dignidade da pessoa humana foi flagrada e divulgada pelo jornalista Carlos Alberto Júnior, em entrevista ao GLOBO. O profissional filmou um homem desempregado gritando por comida e clamando ajuda para poder alimentar a si, sua esposa e seus filhos. O fato foi registrado em plena capital da república!  

Por fim, na busca por respostas talvez devamos provar o indigesto poema “O Bicho”, de Manuel Bandeira. Considerando a sua publicação nos idos de 1948, a obra promove outra indagação ao cardápio do tempo: A justiça tem fome do quê?

“Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.”

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Referências:

FRANCO, Alberto Silva,”et al.”.Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 5ª ed. São Paulo: Ed. RT, 1995. 

BANDEIRA, Manuel. Belo Belo. Rio de Janeiro, 1948.

PenSSAN. Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Ano 2020. https://pesquisassan.net.br/ . http://olheparaafome.com.br/