As duas faces do Presidente Figueiredo: pacificador e malcriado (Capítulo final).
Preâmbulo.
Comentei no final da coluna anterior que, muitas vezes, as mais curiosas histórias a respeito de alguma figura importante não são aquelas que todos conhecem, mas sim, as que permaneceram ignoradas. A respeito do Presidente João Figueiredo eu sei de duas delas, extraordinárias. Mantive-as zelosamente em segredo durante décadas. Agora, com ele já falecido, acho que os demais protagonistas envolvidos não ficarão chateados se eu contar. Vamos lá.
Uma excelentíssima cantada.
Testemunhei, de maneira indireta e acidental, uma peripécia impressionante do então Presidente João Figueiredo. Estava eu na antessala do Secretário Nacional de Cultura, Marcos Vilaça, respeitado intelectual, então ex-presidente do TCU, e, atualmente, membro da Academia Brasileira de Letras.
Enquanto aguardava a audiência, percebi que, durante uma ligação telefônica, certa secretária ali trabalhando parecia estar bastante nervosa. E dizia, vez por outra, “sim, presidente”, “não, presidente”.
A agitação da moça era tão visível que, quando afinal ela concluiu seu telefonema, perguntei se estava se sentindo mal, se eu deveria buscar ajuda. Ela disse que não, que logo ficaria mais calma. E a seguir me disse: “olha, você talvez não acredite, mas eu estava falando com o Presidente”. Perguntei então a qual presidente ela estava se referindo. E ela respondeu mais ou menos isto: “o Presidente da República, o João Figueiredo. E ele estava me dando uma cantada, me convidou para encontrá-lo, para ver os cavalos dele. Ele foi muito insistente, muito inconveniente. E eu não sabia o que dizer”.
Se fosse hoje, a moça em questão (que desconheço se foi, afinal, às cavalariças) talvez botasse a boca no trombone, denunciasse à imprensa e à Justiça o evidente mau comportamento de Figueiredo. O que, naquele tempo, era considerado uma “cantada”, hoje é assédio. No caso específico, as circunstâncias que envolviam o fato eram fortes agravantes – do ponto de vista jurídico porque ele era a autoridade pública máxima do País e ela, ainda que distante hierarquicamente, era uma subordinada dele. Do ponto de vista moral porque ele era casado. E, mais além desse contexto, havia o lado político.
Ao mesmo tempo em que o Presidente do Brasil se ocupava com conversas sedutoras ao telefone, o Governo estava envolvido numa das inúmeras e intensas crises políticas daquele período. De fato, todo o período em que Figueiredo governou, crise foi algo onipresente e ininterrupto. Com maior ou menor grau de intensidade, ela esteve ali o tempo todo.
Você lembra de tudo o que ele passou? Lei da Anistia; fim do bipartidarismo (Arena e MDB); retorno ao pluripartidarismo; volta dos exilados: Prestes, Brizola, Arraes, Francisco Julião, Paulo Freire, dezenas de outros; Diretas Já; negociação das diretas mais tarde; reações da linha dura. E a explosão da bomba (de verdade) no Rio Centro.
Foi durante um desses entreveros – e em meio a abundante noticiário sobre as graves preocupações do Presidente – que o General João Figueiredo resolveu se presentear com alguns momentos de lazer e irresponsabilidade: pegou o telefone, ligou para a moça a quem fora apresentado dias antes, aquela que ele achara tão bonitinha, e lhe passou a cantada do padrão “venha conhecer os meus cavalos”.
Achou pouco? Tem mais uma.
A condecoração do Governador de Santa Catarina.
Você deve saber: a Ordem Nacional do Mérito é uma das mais importantes condecorações concedidas pelo Governo do Brasil a brasileiros. Em princípio, dependendo de quem é o Presidente, somente pessoas muito ilustres, autores de significativos feitos em favor do País, são honrados com essa homenagem. O que talvez você não saiba é que o ato de entrega da Ordem do Mérito é, também, com perdão pela redundância, uma das mais solenes das solenidades da Capital da República.
Em frente ao chamado “Forte Apache”, o principal Quartel do Exército em Brasília, é montado (ou pelo menos era naquela época, bem anterior aos “acampamentos”) um palanque elegantemente decorado para receber homenageados e convidados. Já com todos acolhidos em seus lugares, chega, então, o vetusto e classudo Rolls Royce presidencial, com o Presidente a bordo, de pé, ladeado pelos Dragões da Independência, grupo de elite das Forças Armadas, trajados com uniformes de gala, troteando em seus cavalos brancos.
No ano de 1982 o Governador do Estado de Santa Catarina, Jorge Konder Bornhausen, juntamente com outras poucas personalidades, receberia, das mãos do Presidente da República, o colar símbolo da tão prestigiada Ordem.
E lá estava eu, convidado pelo Governador, distante uns poucos metros de onde Figueiredo, muito circunspecto. colocava o colar, símbolo da honraria, no pescoço de cada um dos agraciados. Graças a essa posição próxima, consegui perceber, com clareza, que, no momento em que pendurava o colar no Governador, Figueiredo segurou os ombros de Jorge e lhe disse alguma coisa ao ouvido. Achei o ato um tanto fora do comum. A nem um outro, o Presidente cochichou alguma mensagem.
Quando tudo terminou e já estávamos a caminho de outro compromisso, fiz ao Governador a pergunta inevitável: o que, afinal, o Presidente da República estava lhe segredando em momento tão solene? E Jorge respondeu: é inacreditável, Paulo; ele falou o seguinte: “olha Jorge, tu que tem fama de comedor, se não ganhar as eleições lá em Santa Catarina, vou mandar te capar”.
Já pensou? De pé lá no todo decorado palanque oficial e, de repente, ouvir de Sua Excia, o Presidente da República, uma brincadeira deste quilate? E nem poder dar uma gargalhada? Pois, o Governador manteve a postura e a seriedade, como se o Presidente lhe tivesse feito o mais respeitoso e importante comentário.
Epílogo.
Por intrigante que pareça, foi este mesmo João Figueiredo quem, no curso de fanfarronices do mesmo gênero, levou até o capítulo final a era dos governos militares, passando por diversas, complexas e desafiadoras etapas.
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