A estilização de um Presidente, a visita de Figueiredo e a “Novembrada”. (Segundo capítulo).
Cenas do primeiro capítulo.
No capítulo anterior lembrei a urdidura de uma transformação: a tentativa de remodelar a sisuda figura do novo Presidente da República, General João Baptista Figueiredo, empossado poucos meses antes, para torná-lo um personagem “popular”. Seu nome virou apenas João Figueiredo e sua fisionomia foi abrandada com a expulsão de seus óculos escuros. Essa estilização, concebida por seu Ministro da Comunicação Social, Said Farhat, pretendia facilitar a missão que cabia ao novo Presidente: fazer a transição do País, com leveza e em paz, do autoritarismo militar à democracia. Foi neste estado de espírito que ele chegou a Florianópolis em 30 de novembro de 1979. Seu mais importante compromisso foi na sede do Governo do Estado, o Palácio Cruz e Souza. Naquele elegante cenário ele assinou diversos documentos de cooperação com a administração estadual e cumprimentaria o povo que o esperava na Praça da Figueira, logo em frente. A seguir seguiria para o “Senadinho”, um popular café no calçadão a poucos metros do Palácio. Mais tarde, ainda compartilharia uma churrascada, às margens da BR 101, com cinco mil comensais.
Durante a parte protocolar dos acontecimentos, no Palácio Cruz e Souza, eu acompanhei, de muito perto, os memoráveis eventos que antecederam o famoso episódio que ficou conhecido como “novembrada”.
Protocolos, documentos e o balcão do Palácio.
Mas, o que, afinal, eu estava fazendo ali, na primeiríssima fila de um acontecimento tão importante? A razão foi de ordem técnica e protocolar. No Governo Jorge Bornhausen havia um órgão, do nível de uma Secretaria de Estado, chamado Gabinete de Planejamento e Coordenação Geral, o GAPLAN, cujo titular, o Secretário, era o empresário blumenauense Norberto Ingo Zadrozny, meu sogro. Como ele não tinha, até então, experiência pública e política, pediu-me para retornar de Washington, nos Estados Unidos, onde eu acabara de concluir uma pós-graduação em Relações Internacionais, para auxiliá-lo na nova tarefa. Pela premência de tempo, tive de voltar, sem escala em São Paulo onde eu tinha minha carreira de professor universitário e de administrador. Assim, tornei-me Chefe de Gabinete do Secretário Chefe do GAPLAN. Havia lá, nas várias “subchefias”, um timaço de primeiríssima linha: Sergio Sachet, Aroldo Joaquim Camilo, Francisco Mastella, Honorato Tomelin, Jairo Nunes de Souza, João Zanata, Lauro Salvador e Orlando Ferreira de Mello, mais a importante contribuição das supersecretárias Monika Muller, que Ingo levou de Blumenau, e Ethel Kretschmar que foi minha assessora lá e mais adiante, por muitos anos.
Entre suas variadas atribuições, o GAPLAN mantinha um relacionamento permanente com os demais órgãos do Governo com o objetivo de acompanhar e harmonizar as ações administrativas. Na sua sede montamos uma “sala de situação” na qual se podia, através de quadros e gráficos nas paredes, continuadamente atualizados, verificar tudo que o Governo estava fazendo e em que etapa se encontrava cada realização. Era natural que, assim sendo, esse órgão fosse designado para fazer o levantamento dos atos que poderiam ser celebrados entre o Estado e a União naquele momento. E transformar essas possibilidades em protocolos, acordos, contratos e o mais que fosse. Ocorre, porém, que, naquela data o Secretário Chefe do GAPLAN, Ingo Zadrozny estaria em viagem de trabalho ao Exterior. E, em decorrência, o Governador me designou para assumir essa tarefa e para estar lá, presente, cuidando de que cada documento fosse efetivamente assinado na presença dele e do ilustre visitante. E assim foi feito, como mostram as fotos.
Voltemos, então, à situação do momento. À frente do Palácio, na praça que já se chamou Largo da Matriz, Largo do Palácio e Praça Barão de Laguna, e que atualmente tem o nome de Praça XV de Novembro, e é também conhecida como Praça da Figueira, ali, no espaço exatamente em frente de onde o Presidente se encontrava, estavam cerca de duas mil pessoas, curiosas, por certo, para ver, ao vivo, o novo personagem encarnado pelo General Figueiredo.
Tudo muito bonito e animador. Mas, houve um problema: no meio desse povo todo, reuniu-se um grupo de uns cinquenta jovens que não gostavam do Figueiredo e de nenhum militar. Foram lá para fazer barulho, para protestar. Carregavam faixas que exibiam reclamações contra a inflação, contra o “arrocho salarial” e, claro, contra “a ditadura”.
Um gesto mal executado acendeu a fogueira.
Fosse a garotada deixada assim, apenas exibindo e gritando palavras de ordem, e a história provavelmente teria outro final. Mas, as piruetas do destino fizeram com que, após os atos administrativos internos, o Presidente, já na sacada onde saudava o povo florianopolitano, tivesse ateado fogo na situação. Lá de cima ele viu e ouviu as manifestações simpáticas e também aquelas hostis ao Governo e ao Regime. E ainda assim estava de boa e resolveu levar na brincadeira, tirar um sarro: fez, ao grupo manifestante, um gesto indicando que eles eram muito poucos em comparação com os numerosos cidadãos e cidadãs que estavam lá com bons modos. Para fazer tal indicação sem palavras, que não chegariam ao destino, Figueiredo juntou os dedos polegar e indicador, formando um pequeno círculo, sugerindo que o grupo do contra era coisa pequena. Só que, visto lá de baixo, e com ânimo belicoso, aquilo foi entendido como um palavrão não falado, um desaforo. E os moços e moças trataram de revidar no mesmo padrão, mas não através de acenos e sim com gritos cabeludos. E do variado repertório ali empregado, o que produziu mais efeito, machucando o novo João, foi o que aludia à sua mãe.
Próximo capítulo.
E foi aí que a história desandou. Na próxima segunda feira, retomo a narrativa desde este ponto até a conclusão da impressionante “Novembrada”.
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