O estupro de BH: o motorista de aplicativo tinha o “Dever de Cuidado”? – Coluna do Thiago de Miranda Coutinho
Na madrugada do último domingo (30/7), uma mulher de 22 anos foi estuprada após ser deixada inconsciente, na rua, em frente à sua casa, por um motorista de aplicativo.
O repugnante caso – o qual merece toda solidariedade à vítima deste hediondo crime e, evidentemente, a consequente responsabilização penal do(s) seu(s) autor(es) –, ganhou contornos acadêmicos acerca da discussão jurídica envolvendo uma eventual imputação penal ao citado motorista. Este teria incorrido na prática de abandono de incapaz, omissão de socorro ou, talvez, sua conduta teria sido atípica?
Para contextualizar o polêmico e ultrajante caso, segundo relatos, ao término de um show, ante à inconsciência pelo estado de embriaguez da vítima, um amigo a colocou em um automóvel de transporte por aplicativo, cujo destino era a residência da jovem. Inclusive, a localização em tempo real houvera sido compartilhada com o irmão da vítima que estaria no endereço de destino final. Contudo, o irmão adormeceu e não acompanhou a chegada.
Eis que, segundo imagens, por volta das 3h, ao chegar em frente ao prédio que a vítima reside, o motorista de aplicativo interfonou para o apartamento da mulher, tentou efetuar algumas ligações, mas não obteve sucesso. Assim, com o auxílio de um terceiro que passava pelo local, o motorista decidiu retirar a jovem – que estava inconsciente –, do veículo, a pôs desacordada deitada na calçada e foi embora.
Momentos depois, conforme imagens amplamente difundidas na imprensa, um outro homem carregou a vítima – frisa-se: inconsciente –, por cerca de três quilômetros até um local afastado e, segundo as investigações, a teria estuprado. O suspeito de 47 anos foi identificado e preso pela Polícia Civil de Minas Gerais. Lamentavelmente, exames constataram a violência sexual sofrida pela jovem. Aqui, um caso indubitável de estupro de vulnerável (art. 217-A, §1º, CP), que impõe uma pena de reclusão de 8 (oito) a 15 (quinze) anos ao autor.
Nesta senda, iniciando os debates jurídicos acerca da conduta do motorista de aplicativo, tem-se que, primeiramente, explanar os conceitos dos crimes de abandono de incapaz e de omissão de socorro.
Art. 133 – Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono:
Pena – detenção, de seis meses a três anos.
[..]
Art. 135 – Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:
Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.
Ante o exposto, percebe-se forte similitude entre os tipos penais. No que tange à consumação, por exemplo, ambos são considerados crimes formais pela exigência da simplicidade da conduta, onde o resultado é o exaurimento.
Já naquilo afeto ao sujeito passivo, a vítima precisa ter uma qualidade especial para o ordenamento jurídico. Logo, uma vez que no abandono de incapaz a vítima não possui capacidade de se defender dos riscos do abandono, na omissão de socorro a vítima precisa estar em grave e iminente perigo.
Todavia, quando se debruça sob o estudo do sujeito ativo, emergem as diferenças. Posto que na omissão de socorro qualquer pessoa pode praticar o delito, sendo, portanto, um crime comum, no abandono de incapaz há uma singularidade no autor. Aqui, o autor é quem cuida, possui a guarda, vigilância ou autoridade sobre a vítima (crime próprio).
Nesse sentido, o doutrinador Cleber Masson discorre que: “É somente a pessoa que tem o dever de zelar pela vida, pela saúde ou pela segurança da vítima. Cuida-se de crime próprio, pois apenas pode ser praticado por aquele que tem o incapaz sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade. Destarte, é imprescindível a especial vinculação entre os sujeitos do delito, caracterizada pela relação jurídica estabelecida entre o agente e a vítima”. (MASSON, 2018, p. 167)
Voltando ao caso concreto, preliminarmente é sabido que a vítima estava inconsciente quando foi deixada na porta de sua casa, não tendo condições sequer de sair do automóvel sozinha. Logo, tal condição da vítima em se encontrar “incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono”, alçou e impôs ao motorista, o dever de cuidado.
É o que assevera o consagrado mestre, Cezar Roberto Bittencourt: “Conhecer o perigo para o bem jurídico tutelado e preocupar-se com as possíveis consequências que uma conduta descuidada pode produzir-lhes, deixando de praticá-la, ou, então executá-la somente depois de adotar as necessárias e suficientes precauções para evitá-lo.” (BITENCOURT, 2013, p. 374)
Por isso, ao que se amolda neste estudo, é que a ação de deixar uma mulher embriagada, inconsciente, durante a madrugada, deitada em uma calçada, a expõe sim a perigo.
Não obstante, o aclamado jurista Damázio de Jesus pontua que: “Tendo a qualificação de crime próprio, o abandono de incapaz exige especial vinculação entre os sujeitos ativo e passivo. Deve existir relação especial de custódia ou autoridade exercida pelo sujeito ativo em face do sujeito passivo. Essa relação jurídica pode advir de preceitos de lei, de contrato ou de certos fatos lícitos ou ilícitos.” (JESUS, 2020, p. 247)
Logo, é perceptível a conduta de abandono – ato de deixar ao desamparo, onde a vítima não ostenta condições de se proteger ou defender de algo –, por parte do motorista de aplicativo. Motorista que, ratifica-se, dada a condição de vulnerabilidade da vítima inconsciente, ostentava o nuclear “dever de cuidado” presente na descrição do crime de abandono de incapaz.
Neste prisma, como leciona o doutrinador italiano Luigi Ferrajoli: “Nos sistemas penais evoluídos, estas conotações, propriedades ou características essenciais podem ser identificadas com aquelas que a doutrina penal chama de elementos constitutivos do delito: a ação, que deve ser exterior e empiricamente visível; seu efeito ou resultado, que deve consistir em um dano tangível; a culpabilidade, que deve permitir a atribuição causal da ação à pessoa que seja seu autor. As garantias penais da materialidade da ação, a lesividade do resultado e a responsabilidade pessoal, além da pressuposta por toda a retributividade, têm conseqüentemente – além do valor político dos critérios de justificação das proibições – também o valor epistemológico de regras semânticas sobre a conotação e sobre a denotação jurídica”. (FERRAJOLI, 2002, pg 99)
Por fim, eis mais um detestável episódio criminoso contra uma mulher, cujas nuances estritamente jurídicas, motivaram o enriquecedor debate acerca da tecnicidade envolvendo o detido estudo do Direito Penal.
Ademais, até o fechamento deste artigo, tem-se que o motorista foi bloqueado temporariamente pela plataforma de aplicativo de transporte, segundo noticiado pela imprensa.
Já quanto à conclusão, se é que há, paira a impositiva dúvida reflexiva: e se ao invés da calçada, ela fosse encaminhada a um hospital, por exemplo?! Pois nas palavras de Machado de Assis, “para as rosas, escreveu alguém, o jardineiro é eterno”. Ao menos deveria.
Veja mais postagens desse autor