Humorista Leo Lins (reprodução redes sociais)

Nos anos 90, uma matéria exibida pela própria TV Globo tratava de dar ênfase às qualidades estéticas da pessoa entrevistada. O texto lido pela repórter Lillian Witte Fibe começava assim: “Dá pra imaginar gente comum, gordinha, careca, míope ganhando um bom dinheiro pra fazer comercial de TV? Pois é, isso acontece cada vez mais”. Podemos encontrar a reportagem no Youtube, através do título “Reportagem gordofóbica Tv Globo”.

Hoje em dia já devemos pensar duas vezes, por exemplo, se chamar alguém de “calvo”. E para evitar qualquer mal entendido com a outra pessoa, acabamos escolhendo expressões mais sofisticadas e menos ofensivas, como por exemplo “alopecia”, que significa ausência de cabelo no couro cabeludo. Outra situação similar é chamar alguém de “gordo”. Em vez de expressá-lo desta forma, em muitas ocasiões preferimos substituí-lo pelo termo “acima do peso”.

Nas últimas décadas as pessoas aprenderam a usar palavras mais sofisticadas para indicar alguma qualidade à outra pessoa, como uma forma de cuidado para não ferir a dignidade de ninguém. Esta tendência ao substituir palavras com tons mais desagradáveis por outras mais leves recebe o nome de “eufemismo” na língua portuguesa. Na verdade, a sofisticação das palavras chamada de “eufemismo” foi uma estratégia política (nem tudo o que é político no final é ruim) para conscientizar a população de que certas expressões pejorativas que normalmente eram atribuídas às pessoas, referidas sobretudo às qualidades estéticas ou intelectuais de alguém, poderiam acabar denegrindo a dignidade delas. Neste sentido, sofisticar as palavras seria uma forma de erradicar muitos preconceitos existentes, com o fim de evitar a marginalização de certas pessoas ou grupos considerados vulneráveis.

Com isso, a linguagem cotidiana acabou se sofisticando com o propósito de evitar ofensas. Mas esta prática também implica limitarmos na hora de expressarmos. Isto afeta indiretamente a “liberdade de expressão”; É claro que ela acaba se limitando indiretamente, mas o seu propósito é estabelecer uma espécie de pacto social: evitamos expressar certas palavras para o cuidado e o bem de todos.

O que pensar, neste sentido, quando um humorista conta piadas sobre negros, homossexuais, deficientes físicos, entre outros grupos vulneráveis? Há duas semanas, assistimos o caso Leo Lins, que ganhou repercussão nacional, após ser decretada a prisão de 8 anos pela prática de crimes do artigo 20 da lei do Racismo (discriminação ou preconceito da raça e cor) e do artigo 88 do Estatuto da Pessoa com deficiência (discriminação de pessoa em razão da sua deficiência). O humorista ainda ganha a possibilidade de recorrer à Justiça, embora os expertos aleguem chances mínimas do humorista ser absolvido.

É devidamente claro pensar que a condena a 8 anos ultrapassou os limites da jurisdição, e que tamanha desproporção se aproxima inclusive a crimes de homicidio. As penas que condenam os limites da “liberdade de expressão” devem ser devidamente regularizadas para não colocar o país em risco de censura e contudo decair no ranking de países mais democráticos. Isto por um lado. Por outro, quaisquer que seja o tipo de liberdade que praticamos, seja nas ações que cometemos diariamente, seja na hora de expressarmos, ela sempre deve ser feita com um grau mínimo de responsabilidade para preservar o bem comum e o funcionamento de uma sociedade mínimamente saudável. Não posso fazer uso da minha liberdade para empreender ações potencialmente capazes de afetar o próximo. Uma ação “deliberada” requer incondicionalmente uma reflexão prévia à própria ação.

Como dizia o filósofo Immanuel Kant no seu imperativo categórico: “Todas as pessoas têm um valor próprio, uma dignidade, e nunca devem ser usadas como simples ferramentas para os nossos interesses”. Se o propósito de Leo Lins era o de fazer o público rir (torná-los mais felizes), porém, a custo de pessoas vulneráveis usadas como meras ferramentas para garantir o espetáculo, não acho que Kant estaria muito contente com a ideia.