O Morro dos Cavalos e o “Cavalo de Tróia” da repactuação

O trecho rodoviário da BR-101 abrangido pelo Morro dos Cavalos, no Município de Palhoça, é uma antiga tormenta para quem trafega por aquela região, em razão dos frequentes congestionamentos e graves acidentes, a exemplo da recente tragédia ocorrida em 6 de abril, quando um caminhão-tanque carregado com produto combustível tombou e explodiu, causando o incêndio de dezenas de veículos, ferimentos e mortes.

Esses acontecimentos reacendem o debate na arena política, em busca de soluções que possibilitem o fim dessa agrura, que causa tantos danos sociais e entraves ao desenvolvimento econômico, com saldo de graves prejuízos aos catarinenses.
Dentre as opções aventadas, cogita-se a repactuação do contrato de concessão da BR-101, rodovia explorada pela Autopista Litoral Sul, empresa do grupo Arteris, que administra o trecho de mais de 400 km compreendido entre as cidades de Curitiba e Palhoça. O contrato de concessão desse trecho foi assinado em 14 de fevereiro de 2008, com prazo estipulado de 25 anos.
As condições para execução das obrigações assumidas pela concessionária são especificadas no Programa de Exploração da Rodovia, que é divulgado pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) juntamente com o edital de licitação, a fim de que as licitantes ofereçam suas propostas. E o programa original da BR-101 determinava que a obra do Contorno de Florianópolis fosse entregue até o 4º ano da concessão, ou seja, até 2012.
O que de fato aconteceu todos os catarinenses sabem: o contorno viário, obra importantíssima para o Estado de Santa Catarina, foi concluído somente em agosto de 2024! A entrega do Contorno de Florianópolis demorou o quádruplo do tempo estipulado para a sua realização. A demora foi tanta que houve a necessidade de construção de 4 túneis duplos que sequer estavam previstos no projeto original, em razão da expansão urbana na cidade de Palhoça.
A Autopista Litoral Sul coleciona uma infinidade de multas por descumprimento do contrato de concessão, aplicadas por especialistas em regulação da ANTT que trabalham “enxugando gelo”, pois o nível de execução das multas é baixíssimo.
Quando levadas a efeito, comumente as multas são compensadas por meio de termos de ajustamento de conduta cujo procedimento carrega nítido traço protelatório. A título de exemplo, em 2022 a Autopista Litoral Sul requereu a celebração de termo de ajustamento de conduta para a compensação de valor que somava quase 400 milhões de reais, referentes às multas aplicadas por meio de 273 processos administrativos instaurados pela ANTT.
Desde novembro de 2023, a Autopista Litoral Sul solicita mês a mês, à ANTT, a dilação do prazo determinado pela ANTT para a apresentação de informações técnicas com vistas à efetiva execução do termo de ajustamento de conduta, situação que persiste até hoje.
Ou seja, a multas não têm efetividade, tal como os termos de ajustamento de conduta, mas as praças de pedágio operam ininterruptamente, onerando os usuários catarinenses pela prestação de serviços insatisfatórios.
Em ambiente regulado onde prevalecesse o engajamento para o cumprimento do contrato de concessão, a repactuação seria uma excelente ideia para a construção das obras no Morro dos Cavalos, pois a prorrogação do contrato permitiria que os valores necessários para as obras se diluíssem no tempo, evitando-se o aumento abrupto do valor da tarifa cobrada dos usuários.
Todavia, um fator muito relevante não pode ser ignorado: usualmente, os maiores dispêndios das concessionárias acontecem nos primeiros anos, quando são exigidas as atividades de recuperação e melhoramento da rodovia. Nos últimos anos da concessão, a empresa basicamente dedica-se à operação, manutenção e conservação da infraestrutura, pois não possui estímulo para a realização de investimentos em um negócio que está por terminar.
Logo, se para a construção do Contorno de Florianópolis, a concessionária demorou longos 16 anos para a conclusão de uma obra que deveria ser entregue nos primeiros 4 anos da concessão, que razão a sociedade catarinense teria para acreditar que a mesma empresa se empenharia para cumprir de modo eficiente as obras no Morro dos Cavalos?
O histórico da Autopista Litoral Sul não atua em seu favor, tampouco a situação atual. E ainda surge outro complicador: qual seria o valor para a construção das obras no Morro dos Cavalos?
A verdade é que em grandes obras de infraestrutura não se sabe o preço certo para sua execução, haja vista a quantidade de variáveis inerentes às atividades de modelagem da natureza. Com a construção dos túneis duplos do Contorno de Florianópolis não foi diferente. O que a ANTT dispõe é de uma série de dados econômico-financeiros cuja precisão é praticamente impossível.
Em uma licitação nova, as obras especificadas nos anexos do edital são precificadas pelos licitantes, quando elaboram suas propostas. No caso da repactuação, a assimetria de informações entre a concessionária e a ANTT seria enorme, e não haveria nenhuma competição entre licitantes, o que favoreceria o comportamento oportunista da concessionária, a fim de lucrar exageradamente, aproveitando-se da pressão social para a entrega das obras.
Por isso, a melhor escolha não é a repactuação do contrato vigente, pois há significativo risco de sucessivas prorrogações, multas, termos de ajustamento de conduta e a repetição de todos os episódios experimentados até aqui.
Caso o poder concedente não queira esperar até o momento da nova licitação, a proposta da Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (FIESC) revela-se como muito mais promissora, no sentido de incorporar essa obrigação ao contrato de concessão da BR-101 trecho sul.
Essa proposta é mais interessante porque o trecho sul, operado pela CCR Via Costeira, que se estende por 217,3 km, de Paulo Lopes até a divisa com o Rio Grande do Sul, foi concedido no ano de 2020, com prazo de 30 anos. Portanto, o trecho sul está nos primeiros anos de concessão, além de integrar a quarta etapa de concessões rodoviárias federais, que incorpora os aprendizados da ANTT ao longo de décadas do programa de concessões, enquanto o contrato de concessão da Autopista Litoral Sul possui tecnologia contratual mais engessada, inerente à segunda etapa de concessões.
Em verdade, referidas obras poderiam ser feitas até memo pelo DNIT, para o que provavelmente o Governo Federal arguiria a insuficiência de recursos. Curiosamente, porém, as concessões federais comumente contam com fomento do BNDES, ao mesmo tempo em que se alega a insuficiência de recursos públicos.
Seja qual for a escolha, a repactuação do contrato de concessão da BR-101/trecho norte tem tudo para se mostrar um “cavalo de Troia”, resultando em experiências amargas para o Estado de Santa Catarina, com a diferença de que a mitologia se converterá em desastrosa realidade.
Não aprender com a história é o primeiro passo para andar de mãos dadas com o fracasso.
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