*Por Thiago de Miranda Coutinho e Jamil Cherem Garcia

Thiago de Miranda Coutinho
Jamil Cherem Garcia

O processo penal é um “mar revolto” que deixa cicatrizes àqueles que o enfrentam. Não importa a travessia, nem o tamanho do barco. As ondas do Estado, da opinião pública e das vicissitudes do sistema judicial são fortes e, por isso, resta ao acusado um horizonte de experiências neste mar aberto que mistura vulnerabilidade, exposição e fragilidades; física, mental e, por vezes, processual. E o que já é complexo, fica ainda mais desafiador quando se está à deriva.

Recentemente, a Sexta Turma do venerável Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou o trânsito em julgado de uma condenação por homicídio qualificado, reconhecendo que a Defensoria Pública desistiu do recurso de apelação sem a anuência do réu.

A fim de contextualizar o episódio emreflexão, após ser condenado pelo tribunal do júri, o réu manifestou expressamente seu desejo de recorrer. Contudo, o advogado que inicialmente o representava não apresentou as razões da apelação, levando o Tribunal a encaminhar o caso à Defensoria Pública.

Então, sem consultar o acusado, a defesa pública desistiu do recurso, argumentando que a pena havia sido fixada no mínimo legal e que a condenação não contrariava as provas dos autos. Adesistência foi homologada, resultando na certificação do trânsito em julgado e na prisão do condenado.​

Tal acontecimento trouxe à tona a relevância da manifestação expressa do acusado no processo penal e suscita reflexões à luz da antológica obra “A Luta pelo Direito”, de Rudolf von Ihering.

Nessa linha, a defesa impetrou habeas corpus sustentando que a desistência ocorreu contra a vontade do réu e sem poderes específicos para tanto, violando os princípios constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal.

 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

Assim, ao se debruçar sobre a controvérsia, a colenda Sexta Turma do STJ reconheceu a ilegalidade do ato, destacando que a desistência do recurso, sem a anuência do réu, malfere osprincípios do duplo grau de jurisdição e da ampla defesa. Logo, o habeas corpus foi concedido para desconstituir o trânsito em julgado da condenação e, de conseguinte, determinar a reabertura do prazo recursal e restabelecer a liberdade do réu.

Ora, o devido processo legal não é um mero formalismo! Tal princípio é arquitrave do Estado Democrático de Direito, bem como é a âncora a impedir que o indivíduo seja levado involuntariamente pelas correntes do arbítrio, da displicência, da indolência e da precipitação. Notadamente por isso, não raras vezes a defesa assume um papel heroico, desbravando as águas turbulentas da persecução penal para garantir que a justiça não seja apenas uma promessa, mas uma realidade a ser efetivada.

Como bem aportaram os ensinamentos do jurista catarinense, professor doutor, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho em uma de suas reflexões sobre o código de processo penal brasileiro:

O processo penal, do seu lado, está vinculado à questão da liberdade, a qual precisa ser bem entendida, pelo lugar que deve ter. No fundo, da mesma maneira que ao “servo se restitui ou se deve tentar restituir a liberdade” [Citando Carnelutti, F.], ao cidadão é preciso garantir a liberdade, salvo exceções expressamente previstas, até que seja definitivamente (coisa julgada) condenado.

E neste ponto, um leve hiato: o foco não é remar críticas em direção à Defensoria ou ao Defensor, mas, sim, fazer emergir dúvidas e, também, certas certezas na linha do que dizia Joaquim Nabuco, jurista e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras: 

A luta pela justiça é o sacrifício de gerações inteiras pelo direito às vezes de um só, para resgatar a injustiça feita a um oprimido, talvez um estranho.

Desta feita, ao adentrar sob as perspectivas de Rudolf von Ihering em sua tradicional – e obrigatória – obra, “A Luta pelo Direito”, cuja primeira publicação se deu em 1872, tem-se que todo operador jurídico deve enfatizar que o Direito não se amolda a uma mera teoria. O Direito é mais que isso!

Por isso, Ihering afirma, o Direito não é uma simples ideia, é uma força viva que exige luta e resistência, pois, como consabido, todos os direitos da humanidade – seja ele coletivo ou do indivíduo – foram conquistados pela luta, inclusive seus princípios mais importantes.

Aliás, como bem vaticinou o jurista alemão, o fim do direito é a paz, o meio de que se serve para consegui-lo é a luta, mormente porque, enquanto o direito estiver sujeito às ameaças da injustiça, ele não poderá prescindir da luta.Ademais, o direito é um trabalho sem tréguas, não só do Poder Público, mas de toda a população, de sorte que qualquer pessoa que se veja na contingência de ter de sustentar seu direito participa dessa tarefa de âmbito nacional e contribui para a realização da ideia do direito.

Ora, no processo analisado a manifestação expressa do réu em recorrer representa sua luta individual pelo Direito, alinhando-se ao pensamento de Ihering de que cada indivíduo deve defender os seus para a justa e perfeita manutenção da ordem jurídica. 

Com isso, a desistência do recurso pela Defensoria Pública, sem a anuência do réu, configura indubitável violação a direito fundamental do indivíduo, na medida que impediu o exercício pleno da defesa e da busca pela justiça. Novamente: são as tais “dúvidas e certezas”.

Certezas sobre consciência democrática,apontadas pelo Mestre dos Mestres, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: 

A consciência democrática e o respeito à lei seguem sendo os escudos que se tem para a proteção de todos e,sobretudo, dos mais fracos.

Apesar da perplexidade do caso concreto, adecisão do STJ reforça a importância de mantermo-nos vigilantes aos princípios constitucionais e ao absoluto desempenho de defesa à luz de “A Luta pelo Direito”, de Rudolf von Ihering.

Definitivamente, evidencia, também – no presente, pois sempre deverá estar presente –, a defesa ativa dos direitos individuais e suaessencialidade para a manutenção Direito na sociedade, pois nas linhas do Nobel de Literatura, José Saramago, “Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia”.

Referências:

BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 17 dez. 2024.

CARNELUTTI, Francesco. Cenerentola. In Rivista di direito processualea, 1946, I, p. 1. Depois, foi ele publicado em Questioni sul processo penale, Bologna: Zuffi, 1950, p.6.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. “Processo Penal: autonomia e crise da legalidade”. Revista Consultor Jurídico. 09/07/2021. Disponível em:<https://www.conjur.com.br/2021-jul-09/limite-penal-processo-penal-autonomia-crise-legalidade/>.

IHERING, von Rudolf. A luta pelo direito. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003.

NABUCO, Joaquim. Minha formação. Obras completas de Joaquim Nabuco. São Paulo: Instituto Progresso Editorial S.A. 1949.

SARAMAGO, José. Citação da personagem Clara, na peça teatral “A segunda vida de Francisco de Assis (1987).

Dos Autores:

Thiago de Miranda Coutinho é graduado em Jornalismo e Direito, com pós-graduação em Inteligência Criminal. Escritor e coautor de livros, atua como articulista em importantes veículos jurídicos nacionais, integra o corpo docente da Academia da Polícia Civil de Santa Catarina (Acadepol), é palestrante e membro efetivo do Instituto dos Advogados de Santa Catarina (Iasc).

Em 2021, foi condecorado pela Associação Brasileira das Forças Internacionais de Paz por sua contribuição à comunidade de Inteligência. Já em 2023, recebeu uma Moção de Aplauso da Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc).

Recentemente, Miranda Coutinho ganhou destaque nacional como autor da sugestão legislativa que resultou no Projeto de Lei 212/2024, apoiado pelo Conselho Federal da OAB, propondo a inclusão de qualificadoras no Código Penal para crimes cometidos contra advogados no exercício da função.

Instagram: @miranda.coutinho_

Jamil Cherem Garcia é bacharel em Direito pela Faculdade Estácio de Sá de Santa Catarina. Oficial de Gabinete da 1ª Vice-presidência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. 

Especialista em Direito Civil pela Universidade Anhanguera. Especialista em Administração Pública e Gerência de Cidades pela Faculdade de Tecnologia Internacional – FATEC. Especialista em Gestão e Legislação Tributária pela Faculdade de Tecnologia Internacional – FATEC. Especialista em Ciência Política pela Universidade Candido Mendes – UCAM. 

Articulista em revistas científicas, periódicos e veículos jurídicos.