Joinville: o fenômeno “Suicide by Cop” e a Legítima Defesa Policial
Uma ocorrência registrada na noite da última segunda-feira (8), no bairro Zona Industrial, em Joinville-SC, chamou a atenção por apresentar indicativos do fenômeno “Suicide by Cop”; termo em inglês que pode ser traduzido como “Suicídio por Policial”.
Após atear fogo em um automóvel, um homem que – segundo a própria família –, não possuía anotações criminais, mas era usuário de drogas e estava desaparecido há três dias, passou a desobedecer às ordens policiais para se render.
Em dado momento, o indivíduo de 34 anos colocou a mão na cintura fazendo menção de estar armado e correu para trás de um muro. Os policiais, então, passaram a usar armamento menos letal de elastômero com projéteis de impacto cinético (popularmente chamado de balas de borracha) para tentar, sem sucesso, conter o suspeito.
Segundos depois, o homem surgiu com uma faca nas mãos e passou a desafiar os policiais militares se auto golpeando no peito numa atitude suicida. Foi aí que após intensa verbalização por parte dos agentes do Estado, o homem partiu violentamente para cima dos policiais com a faca em punho.
Neste exato momento, o policial efetuou os disparos de arma de fogo necessários para conter a injusta e iminente agressão contra sua vida levando o homem a óbito. Caso clássico de legítima defesa vista no artigo 25 do Código Penal, onde “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.
Todavia, este caso – que não é o primeiro a ocorrer em Joinville –, reacende a importância de se discutir a relevância da legítima defesa policial, sobretudo no contexto do infeliz fenômeno do “Suicide by Cop”.
A título de contextualização, “Suicide by Cop” é uma expressão que descreve a situação em que uma pessoa provoca uma resposta letal de um policial para acabar com a sua própria vida.
Fenômeno deveras complexo que levanta questões significativas sobre saúde mental, procedimentos policiais, consequências penais e sua excludente de ilicitude. Pontua-se que tal instituto está esculpido no inciso II, artigo 23, do Código Penal, versando que “não há crime quando o agente pratica o fato em legítima defesa”.
Geralmente, os casos de “Suicide by Cop” envolvem incidentes com pessoas que, deliberadamente, se comportam de maneira agressiva, ameaçadora e com recusa em obedecer ordens policiais durante confrontos críticos; exatamente com o fatídico caso de Joinville.
Em termos psicológicos, a motivação está frequentemente ligada a estados mentais como a depressão, ansiedade, transtorno bipolar e o desespero profundo, onde aqueles que recorrem a essa forma de suicídio podem sentir-se incapazes de tirar suas próprias vidas diretamente e, portanto, buscam uma maneira “assistida” de alcançar esse fim.
Nessa linha, alguns sinais de alerta também podem incluir comportamentos autodestrutivos – como o uso de drogas, autoagressões e comportamentos de risco –, além de expressões verbais ou escritas de desejo de morrer ou, ainda, uma visão negativa e desesperançada sobre o futuro.
Já para os agentes da lei, identificar e responder a uma situação potencial de “Suicide by Cop” é extremamente desafiador. Isso, porque embora os policiais sejam treinados para, se necessário, fazer o uso da força para proteger a si e à sociedade, saber reconhecer os sinais de uma pessoa em crise e encontrar formas de controlar a situação são habilidades que requerem treinamento especializado.
Por outro lado, importa frisar que os policiais envolvidos em incidentes de “Suicide by Cop” comumente enfrentam consequências emocionais significativas. Afinal, a responsabilidade de tirar uma vida, mesmo em legítima defesa, pode resultar em trauma psicológico, estresse pós-traumático e sentimentos de culpa. Por isso, é essencial que as forças policiais ofereçam apoio psicológico adequado para os agentes envolvidos nesse tipo de ocorrência.
Eis que, portanto, emerge a necessidade do inequívoco reconhecimento da legítima defesa policial, pauta já defendida no artigo “Caso Angra dos Reis e a exposição da legítima defesa policial.”, publicado em 2021.
Do referido texto, cita-se que “quando as provocações acadêmicas acerca do não cabimento da excludente de ilicitude são desnudas em ações reais”.
Avançando, “as discussões quanto à possibilidade, ou não, de um policial agir em legítima defesa ganharam importantes capítulos no âmbito do estudo pragmático do direito penal brasileiro.
Recentemente, um dos maiores advogados criminalistas do país, doutor em direito e professor da USP se posicionou afirmando que ‘Policial não age em legítima defesa’. Segundo a vertente adotada, o Estado usaria da violência apenas em estrito cumprimento do dever legal”.
Ainda, “contudo, não se pode prescindir da ousadia de discordar desta posição pois – perante este rico e vasto tema -, estudos e debates aprofundados são cada vez mais necessários para o engrandecimento da cultura jurídica brasileira. Afinal, eis a beleza da dialética. Inclusive, tal dissonância com os pensamentos descritos afloram-se em casos reais. Realidade onde uma vertente acadêmica e teórica (de que um policial não pode agir em legítima defesa), se torna utópica com a vivência social de uma ação policial real, ‘nua’, ‘crua’ e com o ‘cheiro da rua”.
Nessa linha, “o embate jurídico de ideias é válido mormente à cultura fomentada entre sábios mestres (que podem se expor ao “flagelo do equívoco”) e os aprendizes (que devem “beber da ousadia” do contraponto), mas jamais deve ser usado como subterfúgio de tentar criminalizar a Polícia ou minimizar as agruras diárias as quais os operadores de segurança pública são expostos diariamente.”
Por fim, o convite à reflexão: se o policial tem o dever de proteger a sociedade, qual a contrapartida da sociedade (Estado) para com o policial? Respeito! Leia-se: segurança jurídica, valorização pessoal e profissional, treinamento, equipamentos e, sobretudo, perspectivas. Isso para não falar no Suicídio de Policiais que, tristemente, cresce no país. Um prelúdio temático para, talvez, outro artigo.
Thiago de Miranda Coutinho é graduado em Jornalismo e Direito, e pós-graduado em Inteligência Criminal. Escritor e coautor de livros, é articulista nos principais veículos jurídicos do país, integrante do corpo docente de Academia da Polícia Civil de SC (Acadepol), palestrante e membro efetivo do Instituto dos Advogados de Santa Catarina (Iasc). Recentemente, ganhou destaque nacional por ser o autor da sugestão legislativa de propositura de Projeto de Lei (apoiada pelo Conselho Federal da OAB), que visa incluir no Código Penal, qualificadoras a crimes praticados contra Advogados no exercício da função (PL 212/2024). No ano de 2021, foi condecorado pela Associação Brasileira das Forças Internacionais de Paz pelos serviços prestados à comunidade de Inteligência. Em 2023, recebeu Moção de Aplauso da Alesc. Instagram: @miranda.coutinho_
Referências:
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa; Cezar Roberto Bitencourt.-8.ed.rev.e atual.-São Paulo; Saraiva, 2008.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1/ Cezar Roberto Bitencourt. – 15.ed.rev.,atual.e ampl.- São Paulo: Saraiva, 2010.
BRASIL. Código penal. Decreto-lei 2.848 de 7 de dezembro de 1940. . Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Rio de Janeiro, 7 dez. 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm
COUTINHO. Thiago de Miranda. Caso Angra dos Reis e a exposição da legítima defesa policial. Migalhas. Publicado em 13 de julho de 2021. Disponível em: < https://www.migalhas.com.br/depeso/348463/caso-angra-dos-reis-e-a-exposicao-da-legitima-defesa-policial> Acesso em: 09/07/2024.
Homem morre baleado em confronto com a polícia em Joinville. Suspeito teria ateado fogo em um automóvel antes de entrar em confronto com a polícia; ele foi baleado ao atacar agente. ND MAIS. Disponível em: < https://ndmais.com.br/seguranca/homem-morre-baleado-em-confronto-com-a-policia-em-joinville/> Acesso em: 09/07/2024.
HUTSON, H. Range. Suicide by cop. Publicado em 12/1998. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0196064498700642 Acesso em: 09/07/2024.
JALONETSKY, André. “Suicídio por Policial”, uma das ocorrências mais perigosas que o GATE enfrenta. Disponível em: https://ultimosegundo.ig.com.br/policia/2018-12-07/suicidio-por-policial-gate.html Acesso em: 09/07/2024.
LOPES, Leticia. “Sucide by cops”: entenda o tipo de suicídio que a polícia acredita que o sequestrador de ônibus na Ponte cometeu. Disponível em: Acesso em: 09/07/2024.
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RACORTI, Valmor. Protocolo Básico de Suicídio por Policial. Publicado em 08/02/2021. Disponível em: https://www.defesanet.com.br/pm/noticia/39555/Valmor-Racorti—Protocolo-Basico-de-Suicidio-por-Policial/ Acesso em: 09/07/2024.
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