Em meio a operações policiais com nomenclaturas criativas, emerge um assunto que “está na moda”: a colaboração premiada. Seria este um instrumento jurídico de combate ao crime organizado (aos olhos do Estado que acusa) ou uma espécie de “canto da sereia” da mitologia grega (sob a visão do acusado)? De toda sorte e à sorte – como daqueles lançados ao mar do Processo Penal –, remetemo-nos à tragédia de Hamlet no famoso “Ser ou não ser, eis a questão”, de William Shakespeare.

Inicialmente, como exposto, a popularmente chamada “delação premiada” tem ganhado destaque no cenário jurídico brasileiro, sobretudo após a Operação Lava Jato.

Eis que ultimamente, o tema vem navegando em águas catarinenses já tendo aportado na esfera federal e, mais recentemente, com os desdobramentos da atual “Operação Presságio” – que apura supostos crimes cometidos na Secretaria Municipal de Turismo, Cultura e Esporte de Florianópolis –, vem tentando ganhar ancoragem no âmbito estadual.

E por falar em navegação, a licença poética permite dizer que, no meio náutico, o termo “ancorar” também é chamado de “fundear”; um trocadilho que pode não soar engraçado quando a pauta é colaboração premiada.

No contexto, cumpre destacar que esse instrumento encontra a devida regulamentação na Lei 12.850/2013, cujo artigo inaugural aponta que “esta Lei define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal a ser aplicado”.

Nesta senda, a título de elucidação inicial, tem-se que a colaboração premiada consiste em um acordo entre o acusado e o acusador (Ministério Público), onde o primeiro se compromete a fornecer informações relevantes em troca de benefícios, que podem variar desde a redução de pena até a própria isenção da eventual condenação.

É fato que, tendo como principais fundamentos a eficácia da investigação e o conseguinte desmantelamento de supostas organizações criminosas, a colaboração premiada circunda crimes de alta complexidade, como corrupção, lavagem de dinheiro, fraude a licitação, peculato e tráfico de drogas.

Não obstante, são casos penais que envolvem redes complexas e bem estruturadas, nas quais a obtenção de provas se torna difícil através dos métodos ditos “tradicionais” por parte dos órgãos investigadores e acusadores.

Por isso que, não raras vezes, a colaboração premiada se apresenta como uma ferramenta crucial para que autoridades estatais possam penetrar estes organogramas, obter provas robustas, processar com maior detalhamento os envolvidos e, também, localizar e recuperar ativos adquiridos por expedientes ilícitos.

E justamente por isso, ao acusado cabe se valer de uma defesa estratégica atenta ao tema e com a “carta náutica” da investigação defensiva como uma das ferramentas necessárias para enfrentar esse “mar revolto” que é o Processo Penal.

Afinal, basta a leitura do art. 3º da respectiva Lei 12.850/2013 para se ter uma breve noção do que estará por vir:

Art. 3º Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova: I – colaboração premiada; II – captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos; III – ação controlada; IV – acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais; V – interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas, nos termos da legislação específica; VI – afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, nos termos da legislação específica; VII – infiltração, por policiais, em atividade de investigação, na forma do art. 11; VIII – cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas e informações de interesse da investigação ou da instrução criminal.

Dito isso, sabe-se que o acordo de colaboração premiada deve ser formalizado e homologado judicialmente para garantir sua validade. Mas para isso, há que se cumprir algumas etapas.
O ponto de partida – quer seja a proposta de acordo –, pode ser iniciada pelo Ministério Público, pela autoridade policial ou pelo próprio acusado; sempre assistido por advogado.

O segundo momento envolve a chamada “negociação”, ou seja, a definição das informações a serem prestadas e os benefícios que serão concedidos em troca. Aqui, pondera-se a valoração dessas informações e a sua respectiva relevância “bélica” para o acusador.

Posteriormente, o juiz deve analisar a legalidade e a voluntariedade do acordo, sem interferir no mérito das informações prestadas, e por fim, uma vez homologado, o acusado presta as informações e cumpre as obrigações pactuadas, enquanto o Ministério Público e o Judiciário garantem os benefícios acordados.
Com isso, o colaborador pode receber benefícios como a redução de Pena, a substituição por Pena Restritiva de Direitos quando cabível, o Perdão Judicial em casos excepcionais e, ainda, outra opção como uma eventual Progressão de Regime (que é uma espécie de “facilitação” na progressão do regime prisional imposto).

Para isso, as informações do colaborador devem ser eficazes para a elucidação do caso, prestadas espontaneamente (voluntárias e sem coação) e, ainda, completas de modo a abranger todos os fatos relevantes relacionados ao objeto da investigação.

Contudo, toda essa “condição climática” não admite marinheiros (defensores) de primeira viagem.
Isso, porque apesar de sua relevância, a colaboração premiada também enfrenta críticas, desafios e controvérsias no meio jurídico. A incluir, a possibilidade do colaborador fornecer informações falsas ou distorcidas em troca de benefícios, a necessidade de garantir que os direitos do colaborador e dos demais acusados sejam respeitados durante o processo – notadamente ao que concerne à voluntariedade e consequente autenticidade da colaboração –, e, por óbvio, a importância de manter a ética, a transparência e o controle sobre os acordos para evitar abusos por parte do Estado.

No ponto, merece destaque o art. 3º-B e, principalmente, seu parágrafo primeiro que aduz que:

Art. 3º-B. O recebimento da proposta para formalização de acordo de colaboração demarca o início das negociações e constitui também marco de confidencialidade, configurando violação de sigilo e quebra da confiança e da boa-fé a divulgação de tais tratativas iniciais ou de documento que as formalize, até o levantamento de sigilo por decisão judicial.     
§ 1º A proposta de acordo de colaboração premiada poderá ser sumariamente indeferida, com a devida justificativa, cientificando-se o interessado. 

Aqui, paira uma grande reflexão. E se eventualmente a proposta for indeferida e as informações obtidas passarem a ser utilizadas como conhecimento de inteligência (aqueles que não integram os autos, mas podem subsidiar ações futuras), por exemplo?

Ou ainda, se tal indeferimento vier a evoluir àquela condenada prática do “Fishing Expedition” e suas buscas e apreensões indiscriminadas? Vale lembrar que “a expressão faz referência à ‘procura especulativa, no ambiente físico ou digital, sem ‘causa provável’, alvo definido, finalidade tangível ou para além dos limites autorizados (desvio de finalidade), de elementos capazes de atribuir responsabilidade penal a alguém’, como apregoa a doutrina do magistrado catarinense Alexandre Morais da Rosa”, devidamente já citada em outro artigo.

São situações que precisam ser ponderadas pela defesa ao atuar em processos sensíveis, vultuosos e volumosos como, por exemplo, na “Operação Presságio”, deflagrada na capital catarinense.

Desse modo, pergunta-se: vale à pena instruir o acusado a celebrar o acordo de colaboração premiada? Talvez não!

Portanto, convida-se à reflexão do clássico trecho (ato III, cena I) extraído da Tragédia de Hamlet no famoso “Ser ou não ser, eis a questão”, de William Shakespeare:

“Ser ou não ser – eis a questão. Será mais nobre sofrer na alma pedradas e flechadas do destino feroz ou pegar em armas contra o mar de angústias – e, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir; Só isso. E com o sono – dizem – extinguir dores do coração e as mil mazelas naturais a que a carne é sujeita; eis uma consumação ardentemente desejável. Morrer – dormir – Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo! Os sonhos que hão de vir no sono da morte quando tivermos escapado ao tumulto vital nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão que dá à desventura uma vida tão longa. Pois quem suportaria o açoite e os insultos do mundo, a afronta do opressor, o desdém do orgulhoso, as pontadas do amor humilhado, as delongas da lei, a prepotência do mando, e o achincalhe que o mérito paciente recebe dos inúteis, podendo, ele próprio, encontrar seu repouso com um simples punhal? Quem aguentaria fardos, gemendo e suando numa vida servil, senão porque o terror de alguma coisa após a morte – o país não descoberto, de cujos confins jamais voltou nenhum viajante – nos confunde a vontade, nos faz preferir e suportar os males que já temos, a fugirmos pra outros que desconhecemos? E assim a reflexão faz todos nós covardes. E assim o matiz natural da decisão se transforma no doentio pálido do pensamento. E empreitadas de vigor e coragem, refletidas demais, saem de seu caminho, perdem o nome de ação.” 

Afinal, neste “mar revolto” que é o Processo Penal, é preciso cuidar com o “Canto da Sereia”, onde “na mitologia grega, as sereias eram seres demoníacos, capazes de atrair qualquer um que ouvisse o seu canto. Os marinheiros, seduzidos por seu belíssimo som, descuidavam da embarcação e naufragavam”.

Thiago de Miranda Coutinho é graduado em Jornalismo e Direito, e pós-graduado em Inteligência Criminal. Escritor e coautor de livros, é articulista nos principais veículos jurídicos do país, integrante do corpo docente de Academia da Polícia Civil de SC (Acadepol), palestrante e membro efetivo do Instituto dos Advogados de Santa Catarina (Iasc). Recentemente, ganhou destaque nacional por ser o autor da sugestão legislativa de propositura de Projeto de Lei (apoiada pelo Conselho Federal da OAB), que visa incluir no Código Penal, qualificadoras a crimes praticados contra Advogados no exercício da função (PL 212/2024). Instagram: @miranda.coutinho_

Referências:

BRASIL. Lei n. 12.850/2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal. Brasília, DF. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm

COUTINHO, Thiago de Miranda. “STF e os tubarões à la ‘fishing expedition’: um cardápio indigesto no ‘menu criminal’. Consultor Jurídico – Conjur. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2022-set-01/thiago-coutinho-stf-tubaroes-la-fishing-expedition/> Acesso em 18/06/24.

PAES, Arnaldo Boson. O Canto da Sereia. Revista Direito UNIFACS. Debate Virtual, Direito Unifacs. Capa 207. Ano 2017. Disponível em: < https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/5061#:~:text=Arnaldo%20Boson%20Paes-,Resumo,ao%20mastro%20de%20sua%20embarca%C3%A7%C3%A3o.>

ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal Estratégico: de acordo com a Teoria dos Jogos. 1ª ed., Santa Catarina: Emais, 2021, p. 389-390).

SHAKESPEARE, William. A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca. (Publicado em 1623). Monólogo de Hamlet da primeira cena do terceiro ato na peça homônima. Editora Martin Claret; integral edição. Gentil Junior Saraiva (Tradutor). 11 setembro 2020.

SILVA, Viviani Ghizoni da. MELO E SILVA, Philipe Benoni. MORAIS DA ROSA, Alexandre. Fishing expedition e encontro fortuito na busca e na apreensão: um dilema oculto do processo penal. 2. ed. Florianópolis: Emais, 2022.