Cenas dos capítulos anteriores.

Em fase de transformação – de um general durão e mal-humorado em uma espécie da “presidente popular” – João Figueiredo chegou a Florianópolis em 30 de novembro de 1979. Seu mais importante compromisso foi na sede do Governo do Estado, o Palácio Cruz e Souza. Naquele elegante cenário ele assinou diversos documentos de cooperação com a administração estadual e cumprimentou o povo que o esperava na Praça da Figueira, logo em frente. O programa previa que dali ele seguiria para o “Senadinho”, um popular café no calçadão a poucos metros do Palácio. Mais tarde compartilharia uma churrascada, às margens da BR 101, com cinco mil comensais. Ocorreu, porém, que um grupo de jovens contestadores, interpretando mal um gesto do Presidente, partiu para o desaforo. E, desse repertório, saiu uma desabonadora referência à mãe de Figueiredo. Este foi o estopim para a explosão da famosa “Novembrada”.

Acervo jornal O Globo

O “Presidente do Povo” resolveu sair na porrada.

Neste momento eu estava logo atrás das autoridades – entre elas o Presidente, o Governador, e alguns ministros – que ocupavam a sacada. E presenciei o momento cabalístico em que Figueiredo deu meia volta, com a cara vermelha, transtornado, gritando a plenos pulmões “Minha mãe não está em pauta”. Veja só com que frase nosso personagem estava escrevendo uma das mais importantes páginas de sua história. Daí para frente foi um espetáculo quase inacreditável. O General Figueiredo entrou de volta nas salas do Palácio, foi descendo as escadas para sair à rua, bradando que ia “encher de porrada” aqueles ofensores. Seus seguranças tentavam segurá-lo, mas ele afastava todos à volta com cotoveladas. E o Excelentíssimo Presidente da República partiu para a briga, com a intenção clara de chegar ao entrevero físico, no muque. Conseguiram enfim segurá-lo, já na rua, quando todos perceberam que a garotada não estava mais lá, havia se dispersado e misturado com a multidão. Tarde demais para a pancadaria presidencial.

Porém, como tudo na vida, uma situação ruim sempre pode piorar. E o ingrediente que faltava foi fornecido pela assessoria de João que, apesar do desastre iminente, decidiu manter a segunda parte do programa: a ida ao popularíssimo Café “Senadinho”, fundado em 1948, também conhecido como Ponto Chic.

O aviso de Jorge e os tapas na orelha do Ministro.

Na perigosa marcha rumo ao Senadinho | Acervo jornal O Globo.
O café no Senadinho | Foto: James Tavares/Divulgação/ND

O Governador alertou que, àquela altura, e naquele clima, era melhor cancelar, ir logo e direto para a churrascada onde só haveria gente amiga. Mas, foi voto vencido. Lá se foi o Presidente pelo meio da multidão que abarrotava as estreitas ruas do Calçadão. Aos trancos, o grupo de autoridades conseguiu chegar ao destino e, no balcão, como fazem os fregueses habituais fregueses, tomaram, de pé, seu cafezinho.

Aconteceu, então, o que Dr. Jorge previa e temia: os jovens do barulho se reagruparam e, quando Figueiredo saiu do Café, cercaram a comitiva oficial. Voltaram ao seu programa de palavrões e outros insultos. E o pau comeu. Um dos ministros que lá estavam, o da Energia, Coronel da Reserva Cesar Cals, cearense, era muito conhecido por ter grandes orelhas de abano a cada lado da sua avantajada cabeça. E foi justo num desses pavilhões auriculares que lhe deram uma chapuletada que quase o derrubou. Para evitar uma tragédia, os agentes da segurança presidencial – estes, sim, gente de juízo – retiraram dali, rapidamente, o indignado Presidente da República. E o Governador foi junto.

Florianópolis e Santa Catarina escaparam por muito pouco de sediarem uma encenação dramática: o espancamento de um Presidente do Brasil à luz do dia, numa via pública, em meio a uma arruaça.

Em companhia da decepção e da fúria.

O Governador me contou, dias depois, que o trajeto de quase uma hora, que teve de fazer praticamente a sós com Figueiredo, dali onde se encontravam até o local do churrasco, foi um dos piores momentos da sua vida. A principal autoridade do País, que fora a Florianópolis na certeza de que teria um dia de glória, estava sentado ao seu lado, mudo, emburrado, brabo, decepcionado e, como acontece nesses casos, provavelmente culpando o Governador pelo desastre que acabara de
acontecer.

Said Farhat não estava lá, mas, de longe, deve ter percebido que a transfiguração de Figueiredo não tinha dado certo. Deu chabú.

Próximo comentário.

Numa das poucas entrevistas que ainda deu à imprensa, antes de se isolar definitivamente num sítio do Rio de Janeiro, Figueiredo fez um pedido. Não se sabe se à própria imprensa ou ao povo em geral. Perguntado o que ele mais desejava naquele momento, respondeu: “Esqueçam de mim”. Desculpa, então, Sr. General, se lhe tiro, já lá no outro mundo, do sossego desejado e do esquecimento. Mas, além do que lembrei até agora, ainda fiquei devendo a meus caros leitores, mais duas historinhas a seu respeito. A partir da próxima segunda feira pretendo dizer alguma coisa mais sobre seu projeto da redemocratização do País e contar os dois curiosos eventos. Nada a ver com novembradas ou outras roubadas. Mas, um tanto indiscretas, interessantes, e reveladoras do personalíssimo caráter do último presidente do regime militar brasileiro.

Os capítulos anteriores podem ser lidos aqui.