A história do Holocausto – trágico episódio mundial de genocídio contra 6 milhões de judeus ocorrido durante o regime nazista alemão entre 1933 e 1945 –, conta que os prisioneiros deportados ao chegarem nos centros de extermínio eram retirados dos trens e obrigados a fazerem uma fila para, na sequência, passarem por um processo de triagem.[1]

Neste momento, famílias eram separadas; homens, mulheres e crianças. Geralmente, um médico nazista fazia uma rápida análise e decidia se aquele aprisionado seria saudável o suficiente para trabalhar como escravo. Nesse contexto, havia idosos, mulheres grávidas, pessoas com alguma deficiência e enfermos.[2]

Naquela seleção atroz, os recém condenados à morte eram encaminhados às câmaras de gás. A crueldade era tamanha que, a fim de evitar revoltas ou resistências, os nazistas informavam às vítimas que elas deveriam seguir em uma outra fila para, então, tomarem um banho quente. Na verdade, todos nus, caminhavam rumo à sufocante morte.[3]

Feita esta ultrajante, repugnante e vil introdução, eis que na madrugada da última terça-feira (31/10), alguns policiais militares lotados na cidade de Itajaí-SC desencadearam uma “operação” contra pessoas em situação de rua.

Sem qualquer planejamento ou conhecimento institucional da honrosa e quase bicentenária Polícia Militar – como exposto em nota oficial da corporação –, a tal “operação” teria abordado e organizado em fila, aproximadamente 32 pessoas que, simplesmente, receberam a “sentença” de que não poderiam mais permanecer naquela cidade.

Com isso, segundo divulgou massivamente a imprensa, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Inclusão Social de Balneário Camboriú e órgãos de Direitos Humanos, como o próprio Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, tais “prisioneiros” teriam sido obrigados a seguir a pé até a cidade de Balneário Camboriú, cerca de 18km distante.

Não obstante, a inacreditável “deportação” recebeu inúmeros relatos de agressões físicas, torturas, ameaças, racismo, cárcere privado, “toque de recolher”, apreensão e destruição de bens; além de incontáveis outras “rasuras” à Constituição Federal, mormente ao artigo 5° e seus diversos incisos.

“ Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; […]

XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; […]

XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção; […]

XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;

XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;        

XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; […]

LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; […]

LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; ” [4]

Vale observar e relembrar a alguns, que os direitos humanos recebem a nomenclatura de direitos fundamentais na nossa carta maior, a Constituição. Não obstante, aos desamparados cabe, ainda, a assistência prevista de forma clara e explícita no artigo 6° do diploma legal.

“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.[5]

Outrossim, aventou-se que tais violações fundamentalmente constitucionais e de uma carga incomensurável de abusos de autoridade, vinham ocorrendo há cerca de um ano em Itajaí-SC.

Graves informações que deverão ser apuradas pela Polícia Militar (em sede de Inquérito Policial Militar), Polícia Civil (no que tange ao Inquérito Policial) e do próprio fiscalizador legal, o Ministério Público; e devidamente acompanhada pela Ordem dos Advogados do Brasil, órgãos de Direitos Humanos e dos poderes executivo e legislativo, estaduais e federais.

Isso, porque muito se apontou como motivação ou justificativa (se é que há), o mote da Segurança Pública por trás dessa “operação” higienista e segregadora perpetrada por alguns agentes do Estado.

Entretanto, destaca-se que Segurança Pública é o fim, é a atuação do Estado quando todas as barreiras são rompidas pelo criminoso no chamado reflexo das mazelas sociais e da falta de investimento público sério em políticas públicas eficazes como as do Serviço Social (popularmente chamada de Assistência Social).

Num convite à reflexão, quanto investimento é feito no Serviço Social brasil afora? Quais os equipamentos disponíveis em âmbito municipal e estadual nessa área? Há profissionais suficientes para atender tamanha demanda em um país como o Brasil ou uma cidade portuária como Itajaí-SC? Quais as políticas públicas debatidas quando a pauta é pessoas em situações de rua? Como são realizados os serviços de abordagem social às pessoas em situação de rua nas cidades brasileiras? Questionamentos complexos que não cabe à Segurança Pública responder.

É evidente que muitos crimes são cometidos por essa parcela da população e, obviamente, devem ser repreendidos pelo Estado com todas as forças dentro da legalidade e do que preconiza a Constituição Federal. Porém, é necessário entender mais sobre sociologia, criminologia, ética, direito, psicologia, serviço social, história, filosofia e, sobretudo, caráter ao se abordar pauta de tamanha sensibilidade como a Segurança Pública.

Afinal, é fácil comemorar da janela quando um “bando de moradores de rua” (como muitos falam) vão enfileirados caminhando por quilômetros rumo a qualquer lugar que não seja a “minha cidade” e que, assim, não estejam aos olhos da “minha consciência”.

Curiosamente, no mês de julho último ainda se repercutiu a mesma temática em artigo. Intitulado: “Os ‘Direitos Fundamentais Invisíveis’ e o prelúdio da insegurança pública. O desvelar das pessoas em situação de rua à luz do ‘Janela da Alma’”, contextualizou-se a decisão proferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976 pelo eminente ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Sr. Alexandre de Moraes, que – vejam só –, proibiu a remoção e o transporte compulsório de pessoas em situação de rua, bem como qualquer tipo de recolhimento forçado de pertences. [6]

No citado texto, ainda recente, alertava-se que:

“De cunho prático, não há necessidade de ser um profundo estudioso para enxergar o fim na Violência e insegurança pública! Um ‘fim de ciclo’ que se ‘retroalimenta’ e inicia outro.” [7]

“Ciclo este que, na forma de mazelas urbanas, atinge a sociedade que se vê constrangida, vítima e refém do caos à beira da própria janela. Janela da casa e ‘janela da alma’, referenciando o premiado documentário brasileiro que reflete acerca daquilo que vemos (e como percebemos) por meio das nossas experiências pretéritas. Um convite à reflexão de como pode ser rasa a visão de mundo feita por meio dos olhos, somente.” [8]

“Eis então, que o poder público ‘enxerga’ como cura, somente ações reativas de enfrentamento, cujo resultado é sabido. É óbvio que não se pode prescindir da força estatal no combate ao crime. Porém, é preciso investir, também, em medidas preventivas verdadeiramente eficazes que vão da educação à saúde”. [9]   

Quanto ao fatídico episódio de Itajaí-SC, em nota, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania asseverou que “reforça que o recolhimento forçado de bens e pertences, bem como a remoção ou transporte compulsório da população em situação de rua por agentes de segurança pública, é prática atentatória da dignidade e dos direitos humanos dessas pessoas e passível de configurar diversos crimes”. [10]

Por fim, voltando à provocação introdutória, segundo sólido estudo da antropóloga, cientista social e doutora pesquisadora da Unicamp, Adriana Abreu Magalhães Dias (in memoriam) – uma das maiores referências brasileiras sobre o neonazismo, cuja pesquisa ultrapassou 20 anos, inclusive –, o sul do Brasil concentra a maior parte dos neonazistas no país. Entre janeiro de 2019 e maio de 2021, por exemplo, os grupos nazistas aumentaram mais de 270% no Brasil, sendo que cerca 30% delas (1.117 células neonazistas) estão em Santa Catarina. [11]

Dados preocupantes e alarmantes que merecem inúmeras reflexões e análises do que vem ocorrendo nos últimos anos no Brasil e em Santa Catarina; nos campos político, social e de segurança pública.

E qual a “solução final”? Espera-se que não àquela criada pelo nazismo e que, historicamente, marcou o ápice da perseguição contra os judeus na Europa entre 1941 e 1945, já ao final do Holocausto. A chamada “Solução Final” foi um processo genocida de políticas que desencadearam a fome, a miserabilidade social, doenças e, também, da sistematização dos fuzilamentos em massa dos judeus. [12] 

Por enquanto no Brasil, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) registra mais de 281 mil pessoas vivendo em situação de rua. Um triste aumento de 38% entre 2019 e 2022 e que – assustadoramente em 10 anos -, acumula um nocivo crescimento de 211%.[13]

Assim, pode-se concluir como nas palavras do escritor russo, Lev Nikolayevich Tolstoi, que “não alcançamos a liberdade buscando a liberdade, mas sim a verdade. A liberdade não é um fim, mas uma consequência.” [14]