Na próxima quarta-feira (21/6), o Supremo Tribunal Federal volta a julgar a validade da aplicação do “juiz das garantias” previsto pela lei nº. 13.964/2019, chamada de “Pacote Anticrime”.

Em termos práticos, a referida lei que incluiu e alterou artigos nos Códigos Penal e de Processo Penal e, também, na Lei de Execuções Penais, visa – neste polêmico, mas estritamente necessário trecho –, a atuação deste juiz na fase investigativa sendo, conforme o citado texto legal, responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário”.

Ou seja, seria a atuação de dois diferentes magistrados, um na fase introita da Persecução Penal – leia-se, aqui, àquela fase inquisitorial que se dá antes da referida apuração se tornar um processo penal de fato –, e outro juiz no momento em que o caso aporta no Judiciário, na então fase de atuação especificamente de julgamento.

No ponto, cabe relembrar o conceito de persecução penal onde, nas palavras do jurista e promotor de justiça do Estado de São Paulo, Edilson Mougenot Bonfim, “é o caminho percorrido pelo Estado-Administração para que seja aplicada uma pena ou medida de segurança àquele que cometeu uma infração penal, consubstanciando-se em três fases: Investigação preliminar, ação penal e execução penal.”

Oportuno destacar, também, que a aludida lei nº. 13.964/2019 promoveu inúmeras restaurações jurídicas. Dentre as principais mudanças, encontram-se inovações nos acordos de colaboração premiada, nas infiltrações policiais, nos critérios do instituto da legítima defesa, na progressão de regime, além da aplicação de pena máxima de 40 anos de prisão, confisco ampliado de bens para penas superiores a 6 anos e, ainda, previsibilidade de prisão após condenação pelo tribunal do júri.

Contudo, já no outro lado da balança, a efetivação pratica do “juiz de garantias” encontra-se suspensa desde 2020 por decisão do eminente ministro, Sr. Luiz Fux.

Dentre as provocações de inconstitucionalidades acerca do distinto instituto, estão as de suposto vício de iniciativa, violação do princípio do juiz natural, do princípio da igualdade, do princípio da proporcionalidade, da razoável duração do processo, da retroatividade da lei processual penal, além da argumentação de criação de despesas ao judiciário.

Contrapondo tais entendimentos, o insigne advogado e jurista, Aury Lopes Júnior, entende que o “juiz das garantias” é um mecanismo muito importante para que o Brasil possa aplicar o Processo Penal de forma igualitária e imparcial sendo “o momento de virar a folha e reescrever um novo Processo Penal, onde você tenha realmente igualdade cognitiva, um juiz imparcial, e um processo justo.”

  Já o respeitado advogado criminalista, Alberto Zacharias Toron, sustentou da seguinte forma no plenário da Alta Corte brasileira: “Ouso dizer que inconstitucionalidade não há. O que há, talvez, é um erro no nome. Se tivessem chamado de ‘serviço de incremento à repressão criminal’, ninguém teria contestado. Porque, na verdade, o que juiz das garantias faz é uma especialização no âmbito do Judiciário, que é um juiz que vai cuidar dos inquéritos. E vai cuidar dos inquéritos fazendo o quê? Recebendo os autos de prisão em flagrante, concedendo Habeas Corpus quando se identificar alguma ilegalidade, quando se tratar de algum problema formal, quando não houver justa causa para o inquérito policial, que são atribuições normais.”

Neste sentido, um dos maiores juristas do Garantismo Penal, o italiano Luigi Ferrajoli, entende que a verdade não pode ser “obtida mediante indagações inquisitivas alheias ao objeto do processo; está condicionada em si mesma pelo respeito aos procedimentos e às garantias da defesa. É, em suma, uma verdade mais controlada quanto ao método de aquisição, mas mais reduzida quanto ao conteúdo informativo de qualquer hipotética ‘verdade substancial’.”

Ferrajoli complementa que o sistema inquisitivo se caracteriza por “uma confiança tendencialmente ilimitada na bondade do poder e na sua capacidade de alcançar a verdade”, ou seja, tal sistema “confia, não somente na verdade, como também na tutela do inocente às presumidas virtudes do poder que julga.” 

Do mestre italiano para o brasileiro, o ínclito jurista Jacinto Nelson de Miranda Coutinho aponta que “a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo sistema inquisitório. Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime.”

Ao encontro deste escopo, o jurista espanhol, Juan Montero Aroca, aduz que “a primeira exigência de um juiz, que não pode ser, ao mesmo tempo, parte e julgador no conflito submetido à sua decisão.”

É aonde começa a interseção com o clássico romance filosófico “A Revolta de Atlas”, de Ayn Rand; segundo livro mais lido nos Estados Unidos depois da Bíblia.

Na premiada obra, a autora perpassa valores morais fundantes da filosofia chamada de “Objetivismo”, onde a personagem principal manifesta um ideal ético à humanidade quanto ao racionalismo, coragem e liberdade individual.

No enredo, pensadores e inovadores convivem com o peso de um mundo decadente ao serem envilecidos por aqueles que não admitem o valor do trabalho e da produtividade e, para isso, se valem da mediocridade a fim de barrar o progresso individual e, consequentemente, da sociedade.

O livro que supera as 1500 páginas, com mais de 11 milhões de exemplares vendidos, traça uma realidade onde o desaparecimento das mentes criativas – e, consequentemente, da racionalidade, honestidade, justiça, independência, integridade e da liberdade de expressão –, colocam em risco a existência.

Pensamento este apontado no trecho: “Só se pode desarmar um homem por meio da culpa. Por intermédio daquilo que ele mesmo aceita como culpa. Se ensinamos a um homem que é errado olhar para as flores e ele acredita em nós e depois olha para as flores, podemos fazer o que quisermos com ele. Ele não vai se defender. Vai achar que é bem feito. Não vai lutar. Mas o perigo é o homem que obedece a seus próprios padrões morais. Cuidado com o homem de consciência limpa. É esse que vai nos derrotar”.

Contrário a esse inquietante intento, estão o poder de visão e o orgulho presentes no livro. Enquanto o primeiro faz enxergar aquilo que os demais não conseguem, o segundo não vai permitir curvar-se diante de quem é indigno, não aceitando, assim, a derrota antes da hora. Afinal, como prescreve a obra, “se um homem está disposto a começar e só tem em mãos seu orgulho e seu poder de visão, então ele tem tudo o que precisa para começar a crescer.”

Não obstante, conforme trecho de uma entrevista concedida no ano de 1979 ao apresentador Tom Snyder, a autora do Best Seller “A Revolta de Atlas”, Ayn Rand, argumenta sobre a “Era da Inveja”, que ela considera ser o maior mal, segundo sua filosofia.

Na entrevista, de forma contundente ela diz que: “A pior coisa hoje são os ataques à habilidade. Eu chamo de ‘A Era da Inveja’, onde você é atacado pelas pessoas pelo seu sucesso. É o que eu considero a coisa mais imoral na Terra: atacar um homem, não por suas falhas, mas por suas virtudes! Porque para fazer de si mesmo um sucesso em qualquer área de atividade racional, é uma grande virtude. E as pessoas o atacarão por exercitar suas habilidades, por trabalhar duro, por consistência, por ambição, e elas querem que você se sinta culpado por isso. Esse, é o maior mal de acordo com a minha filosofia. É o que eu chamo de vivenciar ou agir pelo ‘ódio do bom, por ser bom’. Isto é, atacar as pessoas por suas virtudes, por suas conquistas, por qualquer coisa que elas tenham que seja um valor de fato; não por seus defeitos e não pelo seu mal. Na verdade, as pessoas que agem assim são as que são sentimentais em relação às pessoas más, os fracassados, os mentirosos e os trapaceiros”.

Portanto, eis a encruzilhada da dúvida: se estaria diante dos hemisférios da “Era da Inveja” e da “Mediocridade Intelectual”? Que nos reste um justo e perfeito “juízo das nossas garantias”. Thiago de Miranda Coutinho é graduado em Jornalismo e Direito. Especialista em Inteligência Criminal, é coautor de 3 livros e articulista nos principais veículos jurídicos do país. Atualmente, é Agente de Polícia Civil e integrante do corpo docente da Academia de Polícia Civil